sexta-feira, 11 de maio de 2018

Os dominicanos, a arte e a modernidade

Exposição e Agenda



Claustro do Convento de São Domingos, em Lisboa, com o interior da igreja ao fundo 
(arquitectos José Fernando Gonçalves e Paulo Providência); 
(foto © Francisco Marujo)
as fotos deste texto são de peças que podem ser vistas na exposição

Será um momento irrepetível: cinco nomes da arquitectura, que já deixaram marcas importantes na arquitecura portuguesa e, em especial, em obras encomendadas pela Ordem dos Pregadores (Dominicanos) estarão este sábado, dia 12, a partir das 16h, num debate com o título Diálogos com a Modernidade. São eles Diogo Lino Pimentel, autor da Capela do Seminário do Olival (Aldeia Nova, Ourém, 1964-67), Luiz Cunha, que desenhou o Convento de Nossa Senhora do Rosário (Fátima, 1962-65), José Fernando Gonçalves e Paulo Providência, autores do Convento de São Domingos (Lisboa) e João de Almeida, que trabalhou com o padre dominicano francês Marie-Alain Couturier (1897-1954), responsável da revista L’Art Sacré, símbolo da renovação artística em França. A conversa, que terei o gosto de moderar, terá ainda a participação de frei Bento Domingues, que tem acompanhado os movimentos de renovação da arquitectura e da arte religiosa desde a segunda metade do século XX. Diogo Pimentel, Luiz Cunha e João de Almeida integraram também o Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), que teve uma importância decisiva nas mudanças ocorridas em Portugal, neste âmbito, nas décadas de 1950-70. 
O debate é uma das actividades paralelas à exposição Dominicanos – Arte e arquitectura portuguesa; Diálogos com a modernidade, patente no Convento de São Domingos (Lisboa), até 10 de Junho. Mas a exposição, além de mostrar peças de arte, desenhos e maquetes, faz do próprio convento um dos seus objectos, como se diz nesta reportagem do Público (sobre o convento e a sua arquitectura, publiquei no livro Vidas de Deus na Terra dos Homens, ed. Círculo de Leitores, 1999, um texto que pode ser lido aqui).
Organizada pelo Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica Portuguesa (CEHR-UCP), e pelo Instituto São Tomás de Aquino, da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores, a exposição tem curadoria pelos arquitectos João Alves da Cunha (CEHR-UCP), João Luís Marques (CEAU-Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto), Paulo Miranda (ISCTE-IUL) e Pedro Castro Cruz. Esta exposição insere-se ainda no programa das comemorações dos 800 anos da Ordem dos Pregadores, que em Portugal incluiu a organização de três jornadas de estudo, das quais resultou já um livro de actas. 
(foto acima, à direita: São Domingos, de José Grave, escultura do Convento dominicano de Fátima. 
Foto © Francisco Marujo) 


Um percurso agitado

Na apresentação da exposição, pode ler-se o seguinte texto: 

No século XX, a arte e a arquitetura religiosa conheceram um percurso agitado como nenhum outro na sua já longa história. Num tempo em que a modernidade desafiou as respostas conservadoras, reivindicando o seu lugar na história e na vida da Igreja, a Ordem de São Domingos participou ativamente neste processo, tendo a sua ação dado origem a algumas das mais emblemáticas obras da história da arte religiosa moderna.
A historiografia recorda o Pe. Marie-Alain Couturier OP (1897-1954) que liderou umas das principais frentes da renovação artística em França, defendendo que a modernidade não era contrária à tradição da Igreja, antes fazendo parte da sua identidade. Fê-lo através da revista L’Art Sacré que dirigiu juntamente com o  Pe. Pie-Raymond Régamey OP (1900-1996).  Esta publicação contribuiu para a profunda mudança de mentalidades na segunda metade do século passado. Couturier foi ainda promotor de obras pioneiras, inicialmente no campo da arte – as igrejas de Notre-Dame de Toute Grâce (Plateau d’Assy, 1950) e de Sacré-Coeur (Audincourt, 1951) e a capela de Notre-Dame du Rosaire, das irmãs dominicanas (Vence, 1951), que ficaram na história pelo talento de artistas como Matisse, Léger, Chagall, Rouault, Braque, Bazaine, entre outros.


Sacrário da igreja do convento dominicano de Fátima, de Luiz Cunha
(foto © Francisco Marujo)

No campo da arquitetura a proximidade de Couturier com Le Corbusier, arquiteto e impulsionador do Movimento Moderno, deu origem a obras ímpares, como a capela de Notre-Dame du Haut (Ronchamp, 1955) e o convento dominicano de Sainte Marie de La Tourette (Lyon, 1960). Sem o contributo dos dominicanos para a aceitação da modernidade artística, dificilmente o Concílio Vaticano II teria  afirmado “A igreja nunca considerou um estilo como próprio seu, mas aceitou os estilos de todas as épocas” Sacrosanctum Concilium.
Em Espanha, o Pe. José Manuel de Aguilar OP (1912-1992) foi um dos maiores protagonistas da renovação da arte religiosa naquele país,  sendo de relevar o seu papel como fundador do MAS - Movimiento de Arte Sacro e diretor da revista ARA - Arte Religioso Actual. A sua ação foi acompanhada por  encomendas dominicanas que afirmaram a modernidade na arte e arquitetura religiosa espanhola como o Colégio Apostólico de Arcas Reales (Valladolid, 1953), o Teologado de Alcobendas (Madrid, 1958), o santuário da Virgem do Caminho (Léon, 1961) e o convento das dominicanas de Santa Inez (Zaragoza, 1964), as duas primeiras do arquiteto Miguel Fisac e as seguintes de Frei Coello de Portugal OP (1926-2013).
Em Portugal, a afirmação da arte e arquitetura religiosa moderna é também devedora à Ordem de São Domingos. Os dominicanos regressaram quase 100 anos depois da expulsão das ordens religiosas de 1834, tendo restabelecido a Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores em 1962. 
A restauração da Ordem implicou a encomenda de projetos para novas casas, conventos, colégios e seminários, que traduziram um novo entendimento sobre a sua organização e distribuição no território nacional. Deste universo de ‘casas’ no campo e na cidade, quatro foram selecionadas para esta mostra [além da Capela e dos dois conventos já referidos, também o Convento de Cristo-rei, no Porto, da autoria de Fernando Távora (estudo de urbanização), Eduardo Martins e Manuel Passos Júnior (projecto construído) e Luiz Cunha (remodelação pós-conciliar da igreja).]
O percurso no tempo e no espaço que estas quatro obras selecionadas ilustram é revelador do empenho da Província Portuguesa da Ordem de São Domingos na promoção de arte e arquitetura de valor em cada época, processo paralelo a outras experiências congéneres europeias. 
A documentação agora reunida, proveniente de diferentes arquivos e instituições, assume-se como trabalho  preparatório ou primeiro passo para a reconstituição da memória do património moderno dominicano que não se esgota nestes quatro edifícios. 
Projetos e obras como o colégio para a Quinta de Queluz (c.1962),  os apartamentos na avenida Barjona de Freitas em Lisboa, a igreja-salão de São Domingos de Benfica (projeto do arquiteto Alberto Camacho, com escultura de António Rodrigues Fernandes, 1973) ou o centro paroquial de Cristo Rei no Porto (projetado na década de 1980 pelo arquiteto Vítor Ruivo Forte) poderão ser objeto de estudos futuros. A totalidade destas obras permitirá novas leituras da história e das diferentes formas de diálogo da Ordem de São Domingos com a modernidade.

Em Dezembro de 2007, publiquei na revista Pública um texto onde, entre outras, falava da igreja do Convento de São Domingos, que a seguir reproduzo:

Deus está na proporção e nos detalhes

Ao primeiro olhar, parece uma grande caixa, vazia. Sim, domina o despojamento e a sobriedade. Depois, entendem-se progressivamente os pormenores: as paredes em placas de betão, unidas como um puzzle quadriculado; os bancos em madeira clara, sem um único prego, sóbrios e confortáveis; as janelas que abrem para a cidade, de um lado e o sereno claustro, do outro; a suave inclinação do chão que permite que todos vejam o que se passa ao fundo; o sol que, ao meio-dia, no Verão, pousa directamente sobre o altar. 


Nossa Senhora do Rosário, de Maria Luísa Marinho Leite, 
escultura do Convento dominicano de Fátima; foto © Francisco Marujo

Igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa, na Rua João Freitas Branco, por detrás do Estádio da Luz. É o mais recente convento masculino construído na capital, há década e meia, depois de dois séculos e meio em que apenas se fecharam ou destruíram lugares assim. A igreja, mais recente, foi dedicada ao culto há precisamente dois anos, em Novembro de 2005.
Duas surpresas: a proporção – as paredes laterais, a parede por trás do altar, ligeiramente inclinada, faz entender que “estamos num outro lugar, diz Paulo Vale, professor de Cristianismo e Cultura na Universidade Católica, que guia esta visita da PÚBLICA. E a atenção esmerada aos pormenores identifica-a como um todo: não há, no conjunto, um pano fora do lugar, um vaso despropositado, uma peça de arte deslocada. O ornamento como “um crime” estraga, hoje, muitas igrejas. “Deus está na proporção e nos detalhes.”
Nesta obra, dos arquitectos José Fernando Gonçalves e João Paulo Providência, tudo encaixa. As portas de entrada, que ficam embutidas numa discreta fresta recortada na parede; os bancos, desenhados e construídos com os métodos da carpintaria antiga, sem pregos nem cola; o contraste entre a cor clara dos bancos e o chão escuro ou o cinzento do betão; a parede inclinada do fundo, artifício de arquitectura que ajuda a perceber e a aumentar a luz zenital; a comunicação com os outros corpos do convento através da janela à direita: o claustro, primeiro, o átrio de entrada no convento, abóbada em meia-lua com 13 metros de altura, a sala do capítulo a seguir, o futuro centro cultural e biblioteca, se houver dinheiro para o construir.
Mesmo na parte da sacristia, nada foi deixado ao acaso: as madeiras, o pequeno corredor de acesso, o elegante lavatório, quase uma pia baptismal em miniatura. Tal como à entrada, nas portas que fazem o guarda-vento: rodando sobre si mesmas, podem permanecer abertas, demarcando mais intensamente a entrada.  
No lugar do coração, como que olhando para todos esses lugares, está o sacrário, um corpo que se destaca da parede lateral. Está voltado a Oriente. De resto, à excepção de um crucifixo (ainda provisório? Não está decidido), não há peças a mais nem a menos na igreja. Ela brilha, nota ainda Paulo Vale, no seu quente despojamento, na escolha dos materiais, no conforto que permite, na forma de utilizar o betão. Remete para a beleza tranquila da Igreja da Luz ou da Igreja na Água, ambas do japonês Tadao Ando. 


Nossa Senhora com o Menino, de Maria do Carmo d'Orey, obra realizada para o Seminário do Olival, actualmente no Convento de Lisboa (foto © Francisco Marujo) 

O despojamento que domina a arquitectura contemporânea está presente em outras duas igrejas de Lisboa, também de concepção e construção recentes: a de Santa Joana Princesa, junto à Avenida Estados Unidos, e a de São Tomás de Aquino, próxima do Hospital da Luz. 
No primeiro caso, obra dos arquitectos Diogo Lino Pimentel e Hugo Venade (2002), o edifício inclui outras valências (auditório, capelas mortuárias, estacionamento, um futuro lar para idosos) e procura relacionar-se com a malha urbana que o envolve. Dentro da igreja, o espaço é luminoso e limpo, a acústica foi cuidada, bancos e coro permitem proximidade do altar. Duas peças destacam-se: o baptistério, como que uma pequena piscina onde se insere a pia baptismal; e o sacrário, peça “admirável na sua simplicidade e presença”. E está prometida uma peça de Gabriela Albergaria, a evocar Santa Joana, a padroeira da igreja. Mas, depois, há detalhes – um pano, um vaso, uma planta, uma imagem… – a mostrar o medo do vazio e da simplicidade. 
Na de São Tomás de Aquino, obra de Pires Marques (1996), esse medo é levado ainda mais longe, pela utilização desmesurada de plantas e vasos, de uma cadeira extravagante, de várias imagens. O desenho da igreja, mesmo se mais agressivo na utilização de esquinas em todos os pormenores, procura uma estrutura que aproxime as pessoas, com os bancos dispostos em ângulo recto e o altar numa esquina. Uma parede de vidro, que o arquitecto desejava liso, é fosco e não permite a relação com a cidade. Mesmo nas igrejas, Deus está (ou não) também nos detalhes. (Sobre o MRAR, pode ler-se também este texto, aqui publicado em Novembro de 2014)

Dominicanos
Arte e arquitectura portuguesa. Diálogos com a modernidade
Convento de São Domingos (Lisboa), até 10 de Junho, entrada livre
Visitas livres: de quinta a domingo, das 16h às 19h
Visitas guiadas: 26 de Maio e 9 de Junho, ambas às 16h 

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