sábado, 7 de janeiro de 2017

Mário Soares (7 de Dezembro de 1924 – 7 de Janeiro de 2017): “Sou talvez um místico que se desconhece”


Há vinte anos, a 22 de Dezembro de 1996, publiquei no Público uma entrevista a Mário Soares, que deixara o cargo de Presidente a 9 de Março desse ano. O pretexto era o facto de que Soares participara em várias iniciativas de carácter religioso. O mistério da morte fascinava e perturbava o antigo Presidente, como confessava. Fica aqui o texto na íntegra, tal como está publicado no livro Diálogos com Deus em Fundo (ed. Gradiva).


Foto Arquivo DN (reproduzida daqui)
  
Depois de ter deixado a Presidência da República, Mário Soares participou, como convidado muito especial, em diferentes iniciativas católicas ou de instituições próximas da Igreja. Embora sempre se tenha assumido como agnóstico, afirma que, “no plano filosófico”, se voltou a interessar pelos temas das origens e do destino da humanidade. Nesta entrevista, respondida por escrito, admite que o mistério da morte o “fascina” e o “perturba”, e que, nos últimos anos, se insinua com mais frequência nas suas reflexões. E cita a frase bíblica “és pó e em pó te hás-de tornar”, para dizer que a morte é a única realidade indubitável, da qual não se deve fazer “abstracção”.
Oposicionista à ditadura do Estado Novo, Mário Soares nasceu a 7 de Dezembro de 1924, em Lisboa. Esteve preso uma dúzia de vezes, chegando a ser deportado para a ilha de São Tomé. No tempo de Marcello Caetano, foi expulso de Portugal e exilou-se em França, em 1970, onde se encontrava quando se deu a Revolução de 25 de Abril de 1974. Em 1973, participou na fundação do Partido Socialista, que passou a liderar e à frente do qual veio a vencer as eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975 e, depois, para a nova Assembleia da República, em 1976. Entre Maio de 1974 e Março de 1975 exerceu ainda o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros de vários governos provisórios.
Foi primeiro-ministro por três vezes (1976-77; 1978 e 1983-85), qualidade em que assinou o tratado de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (hoje União Europeia), em Junho de 1985, e Presidente da República em dois mandatos (1986-96). Desde a sua saída do cargo, passou a dirigir a Fundação Mário Soares. Foi eleito, em 1999, deputado ao Parlamento Europeu, onde esteve cinco anos. Em 2005, candidatou-se de novo à Presidência da República e foi derrotado. Em 2007, foi nomeado presidente da Comissão da Liberdade Religiosa, tendo também exercido diversos cargos internacionais. Publicou vários livros, entre os quais Portugal Amordaçado, os dez volumes de Intervenções (que recolhem os textos enquanto Presidente da República), Português e Europeu, Incursões Literárias, Um Mundo Inquietante e ainda os volumes de entrevistas com Maria João Avilez (Soares), Mário Bettencourt Resendes e Teresa de Sousa.
A sua fé, diz, está apenas no homem, embora admita que talvez se possa definir em termos religiosos com uma expressão usada por Jean Guitton: “Um místico que se desconhece”. A fé, disse-o nas Jornadas de Universitários Católicos, é uma graça. Mas acrescentou: "nunca fui tocado por essa graça". E foi em nome da humanidade e do humanismo, no qual diz acreditar profundamente, que participou em diferentes iniciativas católicas antes e depois de deixar o cargo de Presidente da República – falou, por diversas vezes, nos encontros internacionais pela paz promovidos pela Comunidade de Santo Egídio.


Aceitou, depois de deixar o cargo de Presidente da República, participar em diversas iniciativas católicas ou de instituições próximas da Igreja. Que sentido dá a essa participação?
Participei, que me lembre, apenas em três iniciativas, que se poderão classificar como religiosas ou, melhor, que partiram de organizações conotadas com a Igreja.
A primeira teve lugar em Roma, onde fui a convite da Comunidade de Santo Egídio, em Outubro último, para participar nas X Jornadas de Paz, através do diálogo ecuménico. Há já alguns anos havia sido convidado, então para Assis, para participar nessas interessantes jornadas, que não só reúnem crentes de todas as grandes religiões como também não crentes. Foi, aliás, nesta última qualidade, que fui convidado, como outros agnósticos confessos, como Jean Daniel do Nouvel Observateur e o director do prestigiado jornal italiano La Repubblica, Eugenio Scalfari.
A segunda foi na Universidade Católica, para estar presente e usar da palavra numa homenagem ao padre Joaquim Alves Correia, que tive a honra de conhecer pessoalmente, e que foi uma grande figura da Igreja – exilado na América, onde faleceu, perseguido por Salazar –, um católico progressista “avant la lettre”. [Este episódio é recordado também numa crónica de Anselmo Borges publicada hoje no DN]
A terceira foi um convite do Movimento Católico de Estudantes para fazer uma conferência no final de um seminário que teve lugar no Centro Diocesano do Porto, sobre o humanismo do próximo século.

Aceitei intervir nestas três iniciativas, tão diferentes umas das outras, mas todas significativas e importantes, por as ter achado de grande valor pedagógico, pelo interesse que me mereceram em si mesmas e ainda pelo espírito de abertura e de diálogo, sem preconceitos, que revelaram. Não sendo católico, como todos sabem, senti-me muito honrado pelos convites e por ter participado, livremente, em todas as iniciativas, tão diferentes entre si. Repito, senti-me completamente à vontade e compreendido nos pontos de vista que me foi dado expressar.

O facto de o seu pai ser católico teve alguma influência na sua opção perante a religião?
O meu falecido Pai foi sempre e é, ainda hoje, para mim, uma grande referência moral e política. Era um católico sincero, muito piedoso, um espírito religioso, que foi padre e depois casou, catolicamente, com a minha Mãe, no fim da vida, muito preocupado com a salvação, mas de uma enorme tolerância e abertura de espírito. Nunca me impôs qualquer comportamento religioso, deixando-me inteiramente livre nas minhas opções.

Quando ele começou a perceber que o filho não tinha fé, não entrou em conflito?
Quando percebeu que eu não tinha fé, respeitou sempre a minha posição, designadamente em matéria de casamento ou de não baptismo religioso dos meus filhos. O problema religioso, após a adolescência, foi uma questão que, para mim, deixou de se pôr, entre nós, e que em nada afectou as nossas relações de enorme carinho mútuo.

E a conversão da sua esposa ao catolicismo, depois do acidente do seu filho: provocou algum efeito na sua vida pessoal?
São conhecidas as condições dramáticas em que o problema da fé se lhe impôs. Não somos casados pela Igreja. Sempre foi muito discreta nesse particular. Achamos ambos que se trata de uma opção íntima, da esfera individual própria, de cada um de nós, que sabemos não nos é comum e, por isso mesmo, não é motivo de discussão ou sequer de conversa. Vivemo-la no respeito mútuo e na tolerância recíproca. Bem como os meus dois filhos.

A sua relação com a Maçonaria pressupõe alguma espécie de “fé” deísta, tendo em conta a ideia de um supremo arquitecto?
A minha relação com a Maçonaria, que aliás muito respeito, na medida em que é também uma escola de livre pensamento e de solidariedade, foi muito episódica e datada. Nunca fui particularmente sensível ao ritual nem aos aspectos digamos esotéricos da Maçonaria. Essa relação teve lugar, apenas, em França, durante o meu exílio, em circunstâncias de particular isolamento. Mas nunca teve nada a ver com a “fé deísta”, que nunca partilhei – em França falavam no “supremo arquitecto do universo” – mas tão-só com a “fé no homem e no progresso”, outro tipo de crença, que vem do iluminismo, embora de natureza porventura diferente.

Essa “fé no homem” é uma afirmação que costuma fazer. Mas também tem dito que não sabe “se existe Deus”. São coisas diferentes? Como define a sua posição religiosa actual?
Talvez seja, como disse uma vez Jean Guitton, “um místico que se desconhece”. Não sei... Em qualquer caso, acredito no homem e tenho fé no progresso da condição humana e no destino do homem. Mas não acredito em Deus, ou pelo menos num Deus antropomórfico, preocupado com os nossos problemas humanos, nem, muito menos, na imortalidade da alma.
A minha posição religiosa actual? Considero-me, como sempre me considerei, agnóstico. Não tenho certezas sobre coisa nenhuma (só dúvidas e interrogações) nem, menos ainda, certezas negativas, como acaso terei tido nos tempos em que estive mais próximo do marxismo.
Mas, no plano filosófico, se quiser, voltaram a interessar-me alguns problemas fundamentais, que põem as diversas religiões e filosofias, sobre as nossas origens e destino e sobre o estudo comparado das diferentes religiões. Nesse sentido, é interessante verificar a aproximação, pela coexistência no respeito mútuo e pelo diálogo permanente entre a ciência moderna e algumas religiões mais elaboradas, como o cristianismo ou o budismo...

Como avalia a pluralidade religiosa na sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, o fenómeno inverso dos nacionalismos que se confundem com formas extremistas de professar uma religião?
O professor americano Samuel Huntington, que eu trouxe a Portugal no âmbito das conferências A Invenção Democrática, organizadas pela Fundação que dirijo, tem uma tese, publicada em livro, sobre o choque de civilizações, baseado nas diferentes religiões e que, segundo ele, será o conflito típico do próximo século.
Não li ainda o livro. Só conheço um artigo de revista que o procura sintetizar. Mas, tanto quanto entendi, não o acompanho nessa tese. Para mim, o grande problema do próximo século é a pobreza, que está a cavar um fosso intransponível, uma realidade insanável entre nações ricas e pobres e um dualismo e uma incomunicabilidade crescentes nas sociedades ditas desenvolvidas, entre ricos e pobres, todos no entanto igualmente informados do que se passa no Mundo, através dos novos meios de comunicação e de intercomunicação de massa. Ou se encontram soluções válidas e urgentes para este tremendo problema, lutando eficazmente contra a pobreza e contra todas as outras formas de exclusão social, ou caminhamos aceleradamente para novas e terríveis explosões, incontroláveis.
Ser de esquerda, hoje, é precisamente compreender que é assim, e ser capaz de lutar, a nível mundial, regional e nacional, para resolver esta questão essencialmente social e e justiça social. Contudo, uma questão de tal magnitude na época de globalização económica não se pode resolver hoje no quadro nacional: tem de ser resolvida a nível mundial ou por grandes áreas ou regiões, e então, no nosso caso, a nível europeu. Mas esse é já outro problema...

Embora os nacionalismos tendam a não aceitar essa ideia de globalização...
Quanto a mim – e para voltar à sua pergunta – os nacionalismos só são perigosos num quadro imobilista, de autêntica impotência quanto à resolução dos problemas sociais explosivos da pobreza, do desemprego e da exclusão social. Então, podem vir a tornar-se agressivos e temíveis. A história regista muitos casos desses.
Qual a relação entre os nacionalismos e as religiões? No caso do mundo árabe, é muito evidente o desespero que cresce entre a juventude, sem emprego e o fundamentalismo islâmico. Mas não só no mundo árabe. Veja-se o que explica o aparecimento das chamadas Igrejas da libertação na América Latina ou certo tipo de aflorações budistas na Ásia...

Como vê o papel dos últimos papas na Igreja e no mundo?
Vejo-o, globalmente, como positivo. Refiro-me a João XXIII, Paulo VI e João Paulo II. O primeiro foi quem convocou o Concílio Vaticano II, o bom Papa João do “aggiornamento” ecuménico da Igreja. Paulo VI foi o grande Papa da modernidade que, desde 1963, levou a bom termo os trabalhados complexos do Concílio Vaticano II: a reforma litúrgica, a reorganização da Cúria, dando-lhe um carácter universal, associando-a às Igrejas locais e iniciando o diálogo ecuménico com outras religiões, designadamente com o Patriarca de Constantinopla (ortodoxo) e com o Arcebispo de Cantuária (protestante). Procurou adaptar a Igreja à problemática do mundo contemporâneo, como resulta das encíclicas Ecclesiam Suam (1964) e Populorum Progressio (1967).

Mas de João Paulo II já não gosta tanto...
João Paulo II foi o Papa que “veio do Leste”, que contribuiu, sem dúvida, para a implosão do comunismo e que relançou decisivamente o diálogo ecuménico, nomeadamente através das já referidas Jornadas de Paz de Assis. Foi um Papa sensível aos problemas da pobreza e da solidariedade e, nesse sentido, pode considerar-se um Papa progressista, aos olhos de um pensamento de esquerda. Mas foi muito rígido e dogmático em questões de fé, quanto a certos aspectos litúrgicos e aos problemas ditos de família. Nesse aspecto, tem sido incontestavelmente um Papa conservador. Conheci ambos os Papas, Paulo VI e João Paulo II e com este último viajei quando esteve em Lisboa, Fátima,  Porto,  Madeira e Açores.
De qualquer modo, tanto quanto posso observar, vendo do exterior, a Igreja está à beira de um novo grande impulso de transformação para, uma vez mais, se poder adaptar, com inteligência e sentido de oportunidade, ao mundo novo que desponta, com o próximo milénio. Será a Igreja da mensagem evangélica – do amor pelo próximo e da tolerância –, a Igreja dos pobres, ou perderá gradualmente a sua influência, deixando um espaço enorme ao agressivo materialismo das seitas.
[Mário Soares escreveu várias vezes, desde 2013, nomeadamente no DN, manifestando a sua profunda admiração pelo Papa Francisco]

Que sentido dá a uma festa como o Natal?
É fundamentalmente o de uma festa de família. É um período em que os sentimentos de amor pelo próximo e os sentimentos de simpatia por todos os outros vêm mais ao de cima.
No Natal, costumo sobretudo pensar nas crianças, nos idosos e nos menos afortunados – os que estão presos, os que estão nos hospitais. E lembro-me sempre de umas páginas lindíssimas, sobre o dia de Natal e a consoada, de Ramalho Ortigão nas Farpas...

Quando pensa na morte, qual é o seu sentimento mais profundo?
O mistério da morte – como o da vida – fascina-me e perturba-me. Nos últimos anos, como é natural, são mistérios que se insinuam com mais frequência nas minhas reflexões. Quanto à vida eterna, infelizmente, não acredito nela. Como já lhe disse. Sou demasiado racionalista para acreditar. Cada um de nós, depois da morte, julgo eu, vive apenas na memória dos que ficam. Já não é nada mau que assim seja, sobretudo quando essa memória perdura, com um rasto afectivo, estimulante e emotivo. Mas haverá coisa mais efémera do que a memória?
Quanto à morte? Eis uma certeza que todos temos – talvez a única indubitável – e de que não devemos fazer abstracção, sobretudo nos momentos mais eufóricos ou solares. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris... [Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás-de tornar.] É triste, mas é assim. Não será essa uma das condições da grandeza humana? De continuar a trabalhar, esforçadamente, pelo bem, pelo belo, pelos outros, pelos grandes ideais éticos, apesar de saber que assim é, incontroversamente?

Publicação anterior no blogue
Uma música para o dia de Natal (que hoje volta a ser, no calendário ortodoxo juliano)


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