terça-feira, 8 de novembro de 2016

Tudo é Graça – A Revolução de Dorothy Day


Dorothy Day (foto reproduzida daqui)

Há pouco mais de 13 meses, durante a sua visita aos Estados Unidos, o Papa Francisco evocou, no importante discurso ao Congressoa figura de Dorothy Day: “Nestes tempos em que as preocupações sociais são tão importantes, não posso deixar de mencionar a Serva de Deus Dorothy Day, que fundou o Catholic Worker Movement. O seu compromisso social, a sua paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos estavam inspirados pelo Evangelho, pela sua fé e o exemplo dos Santos”, afirmou o Papa.
A evocação terá deixado muita gente espantada e a perguntar-se sobre quem seria Dorothy Day. Apesar de ter sido uma importante activista, jornalista, sindicalista, anarquista, católica e mística dos Estados Unidos, a sua vida é pouco conhecida entre nós.
Dorothy nasceu a 8 de Novembro de 1897, faz hoje precisamente 119 anos. A data coincide com o dia das eleições presidenciais nos Estados Unidos. Se fosse viva, Dorothy estaria seguramente do lado da recusa do discurso do ódio, da intolerância e da xenofobia.
A biografia Tudo é Graça – A Revolução de Dorothy Day, que acaba de ser publicada em Portugal pelas ed. Paulinas, ajudar-nos a conhecer esta figura ímpar do catolicismo. Publica-se a seguir o prefácio, da autoria de José Manuel Pureza, que abre a porta para a leitura do livro (títulos da responsabilidade do Religionline). 


Uma vida inteira de louvor a Deus através da luta com os pobres

Texto de José Manuel Pureza

Tenho muita dificuldade em usar a apalavra ‘conversão’ para falar de Dorothy Day. Conversão suporia uma mudança profunda de vida, dos seus referentes essenciais. Nesse sentido, conversão teve-a Saulo de Tarso a caminho de Damasco. Ou Bartolomé de Las Casas, encomendero esclavagista depois defensor da humanidade plena dos índios e de todas as suas consequências. Dorothy Day não. A sua vida não mudou no essencial porque ela foi, inteira, um exercício de amor pelos pobres e de louvor a Deus através da luta com os pobres. Uma vida inteira de sonho e militância. Seria, por isso, de uma superficialidade equivocada entender que o abandono da vida boémia e das leituras anarquistas e a adoção da prática sacramental e da contemplação inspirada em Santa Teresa marcariam a passagem da sombra para a luz na trajetória de Dorothy Day. Não, o que marca esta vida, o que dela fica de profundamente interpelador, o que anima a consideração de Dorothy Day como uma referência para a comunidade dos/as crentes é a essencial continuidade da sua paixão pelos pobres, pelos marginalizados, pelos desconsiderados. Fê-lo de formas diferentes ao longo da vida. Mas só as formas foram mudando: a escolha dos pobres e a entrega da vida por eles/as, essas formaram uma substância densa que une, em Dorothy Day, a militância anarquista, socialista e pacifista com a imitação de Jesus e o amor à Igreja.

Dorothy Day nasceu em 1897, em pleno auge de afirmação do capitalismo industrial nos Estados Unidos. A polarização social extrema associada a esse processo, feita de concentração da riqueza e de disseminação e crescimento da pobreza – que Charles Dickens havia retratado de forma inigualável, por referência à realidade britânica, com um título que tudo sintetiza (hard times) – sentiu-a a jovem Dorothy como uma chamada à solidariedade com os pobres: “a partir de então – escreveu com apenas quinze anos – a minha vida estaria ligada à deles, os seus interesses seriam os meus; eu recebera uma chamada, uma vocação, uma direção para a minha vida”. A resposta a essa vocação passou, nos anos 10 e 20, pela sua intensa colaboração com publicações de reflexão e agitação política – The Call, The Masses, The Liberator, entre outras – e pelo ativismo em grupos anarquistas e sindicalistas.

Uma imitação da vida de Jesus

Totalmente entregue à luta social, Dorothy Day viu nela uma exigência ética, mais do que um imperativo estritamente político. O ativismo sindical e anarquista foi, mais que tudo, uma mediação – assumida, cultivada, teoricamente fundamentada, claro – de algo mais fundo. E esse algo mais fundo, Dorothy Day nunca deixou de o associar à imitação da vida de Jesus.
Imersa no movimento social, Dorothy Day formou a consciência muito aguda de que a rejeição, mais ou menos irada, do cristianismo nesse terreno era muito mais o repúdio dos pecados das igrejas que se pretendiam representantes de Jesus do que o repúdio da vida de Jesus. Haveria de escrever a Gordon Zahn, já na fase final da sua vida que “nunca esperei muito dos bispos. Ao longo de toda a história, os padres, os bispos e os abades parecem ter sofrido de cegueira, de amor ao poder e de cobiça. Nunca esperei que eles me liderassem. Ao longo da história, foram os santos que sempre pareceram manter tudo em funcionamento.”  
Dorothy Day foi testemunha viva de que não há pobres, há gente que é levada a ser pobre. E a sua condição crente arrancou desta consciência. Foi, pois, no contacto diário com as lutas sociais emergentes da realidade do empobrecimento que Dorothy Day ancorou o seu amor a uma Igreja que fosse da multidão dos pobres. Como se escreve nesta biografia, Dorothy Day fez-se porta voz de uma mensagem forte para o seu tempo: a de que “Cristo está no meio de nós – não um Cristo limpinho, bem esfregado, domingueiro, mas um Cristo para os dias de semana, um Cristo com roupa remendada, um Cristo dos bairros de lata e das casas degradadas, um Cristo sem casa nem emprego, um Cristo da sopa dos pobres.”
Em 1932, lança-se na construção de um movimento que visava dar corpo a este entendimento da missão dos cristãos. Significativamente, esteve para se chamar The Catholic Radical e foi a própria Dorothy quem sugeriu que se designasse por The Catholic Worker, para que ficasse claro que a mensagem a passar para a sociedade norte-americana era a de que o sujeito da libertação eram os trabalhadores, com as suas reivindicações próprias e com os seus processos de luta próprios para lhes darem força e vitória, pois que o radicalismo, esse, era inerente à própria essência do cristianismo e não carecia de ser enfatizado.
O Catholic Worker tornou-se um movimento forte, assente na dupla vertente de denúncia social e de prática das obras de misericórdia, designadamente a hospitalidade física e espiritual dos pobres. A multiplicação de abrigos e a disseminação do jornal fundador do movimento deu-lhe uma presença de grande alcance durante a Grande Depressão. Mas, sob a orientação tenaz de Dorothy Day, nem mesmo esse contexto de generalizado desespero e de ausência de políticas públicas assentes no reconhecimento de direitos sociais fez o movimento enveredar pelo assistencialismo despido de uma leitura acentuadamente crítica do sistema económico gerador de pobres. O Catholic Worker, com Dorothy Day à cabeça, nunca prescindiu de se colocar do lado das lutas dos trabalhadores contra um capitalismo inerentemente produtor de pobreza. “Quando os homens fazem greve – haveria de escrever no jornal do movimento em 1936 – estão a seguir um impulso, muitas vezes cego, muitas vezes mal informado, mas um bom impulso – poder-se-ia até dizer uma inspiração do Espírito Santo. Estão a tentar defender o direito de serem tratados, não como escravos mas como homens. Estão a lutar por um lugar de gestão, pelo seu direito a serem considerados sócios da empresa para a qual trabalham”. Nada menos.

Membros uns dos outros

E voltamos à continuidade essencial da vida de Dorothy Day. Nela não fez qualquer sentido um dualismo entre a militância social e a oração, entre o protesto radical feito em mistura com gente de todos os credos e o amor à igreja de Jesus. Referindo-se ao eco da execução dos militantes anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, Dorothy Day escreveu: “Toda a nação ficou de luto. Toda a nação, quero dizer, aquela de que fazem parte os pobres, o operário, o sindicalista – os que sentiram mais profundamente o sentimento de solidariedade – o mesmo sentimento de solidariedade que me fez entender gradualmente a doutrina do Corpo Místico de Cristo pelo qual nós somos membros uns dos outros”.
Afirmações como esta – ou como a sua gratidão para com os comunistas: “ajudaram-me a encontrar Deus nos seus pobres, nos seus abandonados, como nunca o encontrara nas igrejas cristãs… Os meus colegas radicais foram aqueles que estiveram na frente de batalha da luta por uma melhor ordem social, onde não houvesse tantos pobres” – valeram-lhe as reprovações sociais que invariavelmente recaem sobre quem denuncia a injustiça e a perversidade da ordem estabelecida, seja ela qual for. A sua militância pacifista, centrada numa não violência ativa radicada no Evangelho – “A guerra é a paixão contínua de Cristo e Cristo não desceu da cruz para se defender” – trouxe-lhe outros tantos dissabores sociais. Em coerência com a opção pela não violência, Dorothy Day recusou qualquer tipo de apoio à violência armada, fosse ela a da resistência ao franquismo ou a sufragada por um certo patriotismo norte-americano contra a União Soviética durante a Guerra Fria.  A escolha da objeção de consciência como campo dos seguidores de Jesus valeu-lhe acusações de traição, de anti-patriotismo ou de apaziguamento com os piores inimigos. E a todas essas acusações Dorothy Day respondeu com a fidelidade sem transigências ao mandamento maior dos crentes: imitar em tudo a vida de Jesus.   
Pela forma coerente como viveu a sua condição de discípula de Jesus nas lutas sociais, Dorothy Day viu-se frequentemente no meio de um fogo argumentativo cruzado entre os ativistas com quem se irmanou nessas lutas pela justiça e os guardiões do templo da ortodoxia conservadora na Igreja católica. Se uns criticaram as suas opções pelo que julgavam ser uma pura expressão de alienação, outros não lhe perdoaram a ousadia das mediações políticas que escolheu para materializar a sua vocação evangelizadora: “Julgam que eu sou uma mulher imoral, com filhos ilegítimos, uma alcoólica, uma chantagista, que comprou um apartamento de luxo às escondidas, que tem dinheiro em vários bancos, que possui propriedades, sendo paga por Moscovo, etc.”. Altos dignitários do clero norte-americano chegaram mesmo a sugerir que as suas opiniões sobre muitos temas seriam naturalmente mais moderadas se ela fosse uma “mulher de família”. O mau gosto machista da insinuação nunca teve da parte dela uma reação desabrida. Mas tão pouco a fez desanimar dos seus propósitos e das suas lutas. Os seus críticos, de dentro e de fora da Igreja, tiveram como única resposta a extrema coerência de Dorothy Day na sua ação sociopolítica e na sua espiritualidade. A força dessa resposta pôs a nu a fragilidade das críticas e a distância entre a proposta de vida de Jesus e os códigos sociais e ideológicos dominantes nas comunidades católicas. Joseph O’Connor, que foi Arcebispo de Nova Iorque, teve a coragem de, em nome da Igreja, afastar a estigmatização política mesquinha de Dorothy Day: “Que fazia ela? Praticava a presença de Deus e fazia tudo – todas as pequenas coisas que constituem a nossa vida quotidiana e o nosso contacto com os outros – para sua honra e glória. Não precisava de muito tempo para expor aquilo a que ela própria chamava ‘o seu pequeno caminho’, que, segundo ela, era para todos. Escreveu a sua história e Deus fez o resto.”
As páginas que se seguem são para serem lidas como um desafio, uma interpelação. Os seus leitores correm um risco, o mesmo risco que foi experimentado pelos companheiros de combate social e de aventura evangélica de Dorothy Day ao longo da sua vida: serem contagiados por uma vida de irmanação com os pobres e de luta pela sua libertação. Se as páginas que se seguem incomodarem quem as ler, então o propósito da sua publicação terá sido plenamente cumprido. 

Coimbra, 9 de outubro de 2016

José Manuel Pureza

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