quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Os anos de ouro da arquitectura religiosa portuguesa

Foram os anos de ouro da arquitectura religiosa portuguesa, assim o define o título da tese de doutoramento que, no passado dia 28 de Outubro, foi defendida pelo arquitecto João Alves da Cunha na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. A definição do título é esclarecedora acerca da importância da tese e do Movimento de Renovação de Arte Religiosa (MRAR), que ela pretende retratar. Tendo em conta essa importância, RELIGIONLINE publica a seguir, por deferência do seu autor, excertos das conclusões e da introdução, por esta ordem, deixando para o final a explicação dos aspectos metodológicos e das razões que levaram João Alves da Cunha a interessar-se pelo tema.
O autor da tese é também membro do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, da Igreja Católica. Os subtítulos são da responsabilidade do RELIGIONLINE. Foram aqui omitidas as notas de rodapé.


Luiz Cunha, Igreja Nossa Senhora de Fátima (1968), 
Póvoa do Valado (Aveiro)

Texto de João Alves da Cunha

A História vale na medida em que pode resolver os problemas do presente e na medida em que se torna um auxiliar e não uma obsessão.” (Fernando Távora, 1947)

O Movimento de Renovação da Arte Religiosa foi um acontecimento único, verdadeiramente “filho do seu tempo”, consequência de episódios que o antecederam e das circunstâncias que se viveram durante a sua existência. (...) António Freitas Leal, P. António dos Reis Rodrigues, Flórido de Vasconcelos, Henrique Albino, João Braula Reis, João Correia Rebelo, João de Almeida, José Maya Santos, Madalena Cabral, Maria José de Mendonça e Nuno Teotónio Pereira ficam para a história como tendo sido os sócios fundadores do MRAR, cuja organização inicial foi profundamente influenciada pela estrutura de duas organizações que lhes eram próximas –a suíça Sociedade de São Lucas que conheciam através de João de Almeida e a Acção Católica Portuguesa.
O grupo sempre afirmou explicitamente a sua formação católica, mas ao longo de toda a sua existência fez questão de se manter como um movimento independente da orgânica oficial da Igreja, como forma de poder relacionar-se e atrair pessoas de outros meios. No entanto, o núcleo do MRAR nunca perdeu o carácter “familiar” ou de pequeno grupo de amigos.
(...) quando fundaram o MRAR propuseram um programa ambicioso: realizar atividades internas para sua valorização doutrinal e técnica, efetuar reuniões de caráter espiritual para desenvolvimento da sua vida cristã, organizar exposições, cursos e conferências, editar publicações, estampas e gravuras, dar pareceres sobre todos os assuntos relacionados com arte e arquitetura religiosa, defender a execução de obras de arte sacra por artistas competentes e promover a realização de concursos. O objetivo a alcançar era tão vasto que é natural que na avaliação que faziam da sua ação considerassem que muito tinha ficado por fazer. No entanto, a realidade é que muito fizeram ao longo da existência do Movimento. Fazendo uso do pouco tempo e dos reduzidos meios que tinham disponíveis, os membros do MRAR conseguiram mudar mentalidades e contribuir para a renovação cultural da Igreja, num processo que afirmou e consolidou a construção da arquitetura religiosa moderna em Portugal. Para isso foi fundamental o estudo e reflexão que eles próprios realizaram, que passou pela consulta e leitura de livros e revistas internacionais, pelas visitas a igrejas no estrangeiro e pela relação próxima com padres e seminaristas, o que lhes conferiu um profundo conhecimento da temática, bem como uma capacidade particular para abordar o programa e projetar igrejas.

Um pensamento construído


Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, 
Igreja do Sagrado Coração de Jesus (1970), Lisboa

No entanto, o pensamento arquitetónico e litúrgico do MRAR não nasceu logo com a fundação do Movimento, mas foi sendo construído ao longo do tempo, num primeiro momento mais a nível teórico que prático, uma vez que os projetos eram muitos limitados. A construção das igrejas de Águas e de Moscavide e da capela do Picote foram por isso fundamentais para a definição da sua proposta, que começou por ganhar corpo em meio rural. O tempo do MRAR foi um tempo de transição na Igreja muito marcado pela realização do Concílio Vaticano II, pelo que a construção em meio urbano das igrejas modernas propostas pelo MRAR acabou por ter de esperar pela sua vez, mas assim que se tornou possível deu origem a igrejas marcadas por um novo programa e por um novo conceito eclesiológico. O desejo de serviço à cidade levou à edificação já não de templos mas de centros paroquiais, onde sobressaía o volume da igreja, mas sem qualquer monumentalidade ou tentativa de domínio sobre o território. A linguagem plástica utilizada era a do seu tempo, feita de materiais e técnicas modernas de construção, mas nenhuma forma ou “cara de igreja” foi estabelecida previamente pelo MRAR. Cada edifício era único e a sua forma resultava do contexto rural ou urbano em que se inseria. A palavra-chave era integração. As igrejas projetadas por Luiz Cunha para Fátima, Negrelos e Póvoa do Valado retratam bem este pensamento arquitetónico do MRAR: no ambiente urbano descaracterizado de Fátima, Luiz Cunha optou pela construção de uma igreja em betão à vista, no território nortenho recorreu à alvenaria de granito aparelhado e na zona de Aveiro fez uso do material local, tijolo de burro, aplicado tradicionalmente como revestimento. Estas três obras muito distintas na forma, mas próximas na conceção litúrgica e arquitetónica, acabaram assim por contribuir de um modo especial para a confirmação das virtudes da integração arquitetónica de cada obra no seu meio ambiente como defendia o MRAR.
Quanto ao entendimento do espaço interno de uma igreja, o MRAR promoveu o funcionalismo litúrgico, pelo que defendeu a afirmação de um lugar próprio para cada função como forma de a valorizar litúrgica e pastoralmente. No entanto, devido à primazia que dava à celebração eucarística – que considerava como a função primeira da igreja -, o seu espaço litúrgico era totalmente orientado para o altar principal, peça central que predominava sobre todos os restantes elementos da igreja. Havia, consequentemente, uma grande preocupação com a boa visualização do altar, pelo que os espaços tinham de ser abertos, amplos e libertos de pilares, de modo a permitir uma proximidade visual do altar, mas não necessariamente física, pois considerava-se que se tinha de assegurar a hierarquia do espaço litúrgico, com uma distinção clara entre o presbitério e o lugar dos fiéis. De modo a acentuar a centralidade do altar, o MRAR defendeu também o despojamento decorativo – principalmente da zona do presbitério - para impedir a distração dos fiéis. As suas igrejas possuíam assim poucos elementos artísticos, os quais eram posicionados em locais pastoralmente estudados. Estes eram sempre obras de autor, de grande qualidade artística, pois o MRAR opunha-se às peças de série. No entanto, as obras de arte tinham de partilhar o seu espaço com a arquitetura, pois o MRAR considerava que a componente artística da igreja não se resumia a obras de pintura ou escultura, mas que também a própria arquitetura - através das suas cores, materiais, texturas, jogos de luz e sombra -, era arte em si mesma, ou seja, paredes, pilares e vigas eram outros tantos componentes artísticos da igreja. Surgiu assim uma família de igrejas cujas características foram bem descritas pelo jornal Novidades, que no momento da inauguração da igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, obra mais emblemática do Movimento, acabou por revelar como a proposta do MRAR havia vingado, ao afirmar: “a preocupação dos artistas que conceberam a nova igreja do S. Coração de Jesus foi precisamente a de fazerem um templo segundo as indicações do Concílio Ecuménico. E ninguém dirá que não o conseguiram. Tudo ali é amplo e funcional. Milhares de toneladas de cimento armado tomaram forma, erguendo-se em paredes e colunas a que não faltam majestade e sobriedade. Paira no grandioso recinto o espírito de «pobreza evangélica», que melhor afirma a dignidade da sua função. É um templo da hora, em que as almas se sentirão livres de tudo o que poderia distraí-las do centro [e] o centro é o altar”.

Um programa artístico e pastoral



Alzina Menezes e Erich Corsepius, 
Igreja de São Jorge de Arroios (1972), Lisboa

Num tempo politicamente conturbado e de forte secularização, o MRAR conseguiu afirmar em Portugal um programa artístico e pastoral que se constituiu como o melhor exemplo de intervenção religiosa e cultural de uma elite que operou uma efetiva renovação dos edifícios religiosos, bem como uma valorização das dimensões sociológica e antropológica dos espaços litúrgicos. Essa fora a missão com que foi criado por um pequeno grupo de arquitetos mobilizado para a luta por um tema determinado e localizado no tempo. (...)
Apesar da proposta arquitetónica do MRAR não ter perdurado no tempo, o seu modo de proceder – caracterizado pela promoção do debate, da formação, da crítica de projetos e da troca de informação entre pares – mantem-se ainda hoje um modelo possível para os agentes responsáveis pela criação e gestão da arte e arquitetura religiosa. O MRAR soube reunir, formar e sensibilizar arquitetos, artistas, padres e seminaristas para a dimensão estética das obras da Igreja. Esta caminhada de estudo, discussão e formação comum que o MRAR experimentou revelou-se como factor de qualificação da arquitetura religiosa e permanece, por isso, uma lição importante para os nossos dias, tal como a humildade e sentido de serviço que sempre revelaram. Como na resposta a uma carta que o Movimento recebeu em 1964 com várias referências em tom de ameaça ao prestígio do MRAR, “movimento novo entre nós [que] tem grandes opositores de categoria”, que levou Diogo L. Pimentel a clarificar o sentido e propósito do Movimento – “A acção do MRAR é de esclarecimento, de apoio, de doutrinação, de incentivo, de formação, de divulgação, etc., mas nunca de realização de obras. (…) Esclareço: o MRAR é um movimento de católicos empenhados em servir a Igreja num campo específico – o da Arte Sacra. Deste modo, (…) o MRAR não faz projectos, nem se preocupa muito com o seu prestígio. (…) O MRAR preocupa-se com a Igreja e não consigo próprio”. Assim nasceu em 1953 e assim terminou em 1969.

(da Introdução)

“O inconveniente dos homens não conhecerem o passado é que também não conhecem o presente.” G. K. Chesterton (1933)

O trabalho que agora se apresenta tem como tema O MRAR e os anos de ouro da Arquitetura Religiosa em Portugal no século XX – A ação do Movimento de Renovação da Arte Religiosa nas décadas de 1950 e 1960. O interesse por este Movimento teve o seu início durante os anos em que o autor trabalhou diretamente com o arquiteto João de Almeida – 2001 a 2008 –, que sabendo do interesse pessoal na temática da arquitetura religiosa foi partilhando ao longo dos anos pequenas histórias de viagens pela Europa Central e de um grupo de amigos e colegas que nas décadas de 1950 e 60 lutaram em Portugal pela arte moderna nas igrejas.
O fascínio pelos relatos escutados começou por levar a uma procura bibliográfica sobre o tema que rapidamente se confrontou com a escassez de escritos (…). Com o passar do tempo, concluiu-se que a informação conhecida do Movimento (…) não só era bastante reduzida comparativamente à ação e alcance do MRAR que se ia escutando nos relatos de João de Almeida, como não era de modo algum suficiente para conhecer a fundo e entender o percurso e a importância do Movimento.
Neste contexto, motivado por alguns arquitetos e teólogos, bem como pela vontade de (dar a) conhecer este pedaço da nossa história ainda recente – que ainda era possível recuperar com testemunhos na primeira pessoa de alguns membros do MRAR –, decidiu o autor contribuir para a investigação sobre o Movimento propondo a hipótese de que ao tempo da sua existência corresponderam os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX, primeiro de tudo pelo modo de abordar o tema, baseado num profundo e sistemático estudo, debate, reflexão e partilha realizados entre diferentes grupos profissionais juntamente com padres e seminaristas, mas também por ter dado origem a uma “família” de obras construídas com uma qualidade e erudição que depois teve equivalente apenas em algumas obras isoladas, mas não noutros conjuntos no tempo ou no espaço. (…)
Perante a escassez de material bibliográfico disponível, o trabalho seguiu uma metodologia que deu prioridade ao contato direto com os membros vivos do MRAR e à recolha dos testemunhos de arquitetos e demais participantes do Movimento, o que permitiu não só enriquecer as bases transmitidas por João de Almeida, mas levou também à descoberta de material inédito na posse dos mesmos, bem como à reunião de pistas e locais novos para a investigação que levaram ao levantamento de muita informação direta ou indiretamente relacionada com o MRAR. (…)
Conhecida a atividade, organização e intenções do Movimento, considerou-se fundamental confrontá-las com a realidade construída de modo a avaliar da sua relevância concreta na arquitetura religiosa. Realizou-se então um levantamento das igrejas contemporâneas do MRAR que incluiu visitas de estudo a todas as obras diretamente relacionadas com o Movimento, bem como à recolha de informações mais detalhadas existentes em artigos e textos diversos, mas principalmente nas Memórias Descritivas e Justificativas, que muito ajudaram a explicitar a argumentação do MRAR e o seu modo de pensar uma igreja, mas também a evolução por este efectuada ao longo de tempo e que ficou claramente registada nas palavras e expressões utilizadas. De igual modo, também o levantamento dos livros e revistas que os membros do MRAR consultaram na época permitiu chegar às suas fontes de informação e entender melhor as bases do seu pensamento.
Entre as obras visitadas incluem-se as igrejas de N. Sra de Fátima, Águas, Penamacor; Santo António, Moscavide; N. Sra de Fátima, Figueira, Vila do Bispo; São Simão, Barco, Fundão; N. Sra da Piedade, Vidais; São Mamede, Negrelos, Santo Tirso; Seminário Dominicano do Olival, Aldeia Nova, Ourém; N. Sra de Fátima, Póvoa do Valado, Aveiro; N. Sra do Rosário, Fátima; S. Coração de Jesus, Lisboa; S. Jorge de Arroios, Lisboa; Santiago, Almada; Sagrada Família, Paço de Arcos; N. Sra. da Conceição, Queluz; S. Coração de Jesus, Porto; Sagrada Família, Albarraque; São Lázaro, Braga; Santa Joana Princesa, Aveiro; Convento das Franciscanas de Calais, Gondomar; Santo Isidro, Pegões; N. Sra de Fátima, Póvoa de Santa Iria; N. Sra dos Remédios, Bairro da Sacor; Bobadela; N. Sra da Conceição, Rio Maior.

Uma viagem de estudo


João de Almeida, Igreja de Paço d'Arcos (1969), Oeiras

Importa também referir a importante viagem de estudo efetuada a França e Suíça, que permitiu reproduzir parcialmente os passos dados por João de Almeida entre 1949 e 1952. O objetivo da viagem foi o de conhecer as principais obras que mais diretamente influenciaram os arquitetos do MRAR e que se encontravam dentro do material trazido daqueles países por João de Almeida, material esse que veio a informar e entusiasmar o jovem grupo, levando-o à realização da “Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea” em 1953 e consequentemente à formação do MRAR. Esta viagem centrou-se na visita às principais obras devidas aos dominicanos Couturier e Régamey, diretores da revista L’Art Sacré que orientaram João de Almeida durante um ano em Paris – igrejas de Assy e de Audincourt, capela de Ronchamp e convento de La Tourette –, e as várias obras dos suíços Fritz Metzger, Ernst Gisel, Karl Moser e Hermann Baur, com particular ênfase para as igrejas deste último por ter sido no seu atelier que estagiou João de Almeida no começo dos anos de 1950.
Em ordem à elaboração de uma apresentação do trabalho realizado com o objetivo de tornar compreensível a existência e o percurso histórico de um movimento como o MRAR, que foi causa e consequência de fatores diversos e perante o olhar histórico que caracteriza esta investigação, considerou-se que a abordagem no estilo narrativo seria a mais adequada para apresentar com fidelidade o Movimento. Os acontecimentos estão deste modo apresentados e articulados segundo uma ordem cronológica, recorrendo-se frequentemente à citação de comentários, pensamentos e ideias expressas então, como forma de garantir a riqueza do discurso original e de lhe garantir uma genuidade que poderia ser falseada no recurso a palavras nossas.
(...) O Capítulo 1 ocupa-se da primeira metade do século XX (1900-1950) e procura apresentar os antecedentes que levaram ao aparecimento do MRAR. Para isso começa por resumir a evolução política, religiosa e social portuguesa, destacando-se o aparecimento da Acção Católica Portuguesa e o desenvolvimento do movimento litúrgico pelo papel que tiveram na criação e no pensamento do MRAR. Seguidamente é abordado no campo da Arquitetura, o Modernismo e o Português Suave que o sucedeu (...).
Assim como o MRAR surgiu no seguimento e como resultado de diferentes acontecimentos que o antecederam, de igual modo, uma vez fundado, foi bastante influenciado pelo contexto em que se situou. Isso mesmo retrata o Capítulo 2 que procura ajudar a melhor entender o percurso do MRAR, começando pelos importantes desenvolvimentos políticos, religiosos e sociais vividos em Portugal nas décadas de 1950 e 60, que marcaram sobremaneira o percurso do Movimento, nada alheio ao ambiente em que estava inserido. (...)
[O Capítulo 3 – “MRAR: história”] compreende o relato exaustivo da vida do Movimento desde os anos imediatamente anteriores à sua fundação até ao seu ocaso. (...)

O quarto e último capítulo aborda a relação do MRAR com a arquitetura religiosa, recorrendo aos edifícios que naquele tempo foram projetados pelos membros do Movimento, porque foi nestes projetos - aqui divididos em igrejas rurais, urbanas, remodelações ou igrejas não construídas – que se testou e materializou o pensamento arquitetónico e litúrgico do MRAR. (…)

1 comentário:

Daniela Ambrósio disse...

Boa tarde,
Venho por este meio convidar e solicitar a divulgação do Lançamento do livro "O MRAR e os anos de ouro da Arquitetura Religiosa em Portugal no século XX" que teve origem nesta tese, de João Alves da Cunha.

Apresentação da obra por João de Almeida, Diogo Pimentel e José Manuel Fernandes.
Terá lugar na Capela do Rato, dia 10 de Novembro pelas 18h30.

Toda a informação neste link: https://www.facebook.com/events/856550337773641/

Com os melhores cumprimentos,

Coordenação de Marketing da Universidade Católica Editora