segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Actualizar as "Obras de Misericórdia"


É no primado da dignidade humana que permanece a ética e se reconstrói a confiança. Se a acção é motivo de escândalo ou fere a dignidade, há que repensar as opções. Pelos caminhos da mudança urgente, ecoa a experiência da história como aviso contra a precipitação. Se “cortar a eito” é princípio de acção, haja sabedoria para atenuar a aparente inevitabilidade.
Seria importante rever os catorze gritos de alerta que despertam para a acção concreta e fraterna. Em contexto cristão chamaram-lhe obras de Misericórdia, que no actual contexto pedem uma nova hermenêutica.
Dar de comer a quem tem fome é, na sua raiz, urgência de humanidade. Os gestos mais simples podem não matar as fomes do mundo, mas é nos pequenos combates que começam as grandes revoluções. Matar a fome é apenas o primeiro passo.  
Dar abrigo aos peregrinos, porque a vida é uma peregrinação. Somos chamados a exigir políticas justas de habitação. Ninguém experimenta a justiça sem tecto, e ninguém tem o direito de tirar um tecto a quem não tem para onde ir. Mas somos chamados também a acolher com o coração, no espaço inabitado de afectos.
Assistir os doentes e os mais frágeis requer uma renovada disponibilidade, a começar na família. Os grandes centros urbanos arrastam grandes desafios, a emergência da organização e da criatividade, sustentável e responsável, mas não cúmplice. Porque um doente não é uma equação, exigem-se políticas de saúde que tenham em conta a integridade da pessoa humana, sem distinções ou subterfúgios financeiros.
Dar de beber a quem tem sede, porque não há como garantir a paz enquanto houver quem não tem dignidade na sobrevivência. É urgente promover políticas para a erradicação da pobreza e para a distribuição justa. Mas que esta urgência ética não abrande o combate à indiferença, que promove a consciência colectiva contra a cobiça e o lucro que subjuga. Porque não há justiça enquanto a fragilidade do outro for instrumento para o subjugar.
Vestir os nus. Uma mudança de comportamentos implica também a sobriedade que abre caminho à partilha. Contrariar o culto do luxo e do supérfluo. De que serve gritar a solidariedade aos quatro ventos se a nossa vida não é coerente?
Socorrer os prisioneiros. Na sociedade do medo e da insegurança, que espaço há para dar nova oportunidade aos que falham? Socorrer os presos é ajudá-los no processo de recuperação da dignidade. No direito à cidadania e liberdade, no contexto da justiça e do arrependimento, mas também ajudar as famílias desamparadas, os filhos que a circunstância atira para a crueldade da vergonha e do abandono.
Enterrar os mortos porque cada pessoa é um templo, um ser com história e memória que na morte encerra apenas o capítulo maior da existência. Se, no exercício da fé, se projecta a vida depois da morte que há-de explicar a nossa humanidade, é na travessia que revelamos do que somos feitos. A morte não começa apenas quando pára um coração. E se no final da caminhada, a morte tem as vestes da indiferença, que não seja a indiferença a vencedora sobre a morte, mas o derradeiro respeito, que dará sentido ao ciclo da vida. 
Instruir, aconselhar, consolar, confortar, perdoar, suportar com paciência, rogar pelos vivos e pelos mortos.
Nos rumores da história ecoam verdades simples e universais que sobrevivem nas entrelinhas da fé. Acção que faz acção e promove mudança. Não se trata de ensaiar experiências pontuais de uma certa caridadezinha que perpetua a miséria nas entranhas da vida. Ontem, hoje e sempre, ter misericórdia é entrar na carência do outro, até que a carência do outro seja a debilidade insuportável.

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