sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

Laicidade e liberdade religiosa
Esther Mucznik
Público, 9.12.2005

Sobre a polémica em torno da retirada de crucifixos em algumas escolas:

"(...) eu diria que o "combate" de uma associação como a Associação República e Laicidade - que denunciou a existência de crucifixos em determinadas escolas - não é o mesmo do das confissões não católicas, que na sua maioria não se revêem no "militantismo" laico que se dedica a esquadrinhar o país à caça de símbolos católicos para os erradicar do espaço público.Gostaria de dizer com toda a clareza que, de uma forma geral, não sou favorável à proliferação desses ou de outros símbolos religiosos nos edifícios públicos. Liberdade religiosa e liberdade de manifestação religiosa nem sempre coincidem e há momentos em que determinadas manifestações religiosas podem colidir com a liberdade religiosa alheia. Mas não faço disto uma questão principal e decisiva e acredito que, mais do que a legislação, é o bom senso que deve prevalecer, equilibrando sem dramas as regras decorrentes do estatuto de Estado não confessional, por um lado, o costume e as tradições, por outro. Se o consenso de pais e alunos de uma determinada escola for no sentido de porem o crucifixo, sinceramente não vejo qualquer problema. E não vejo qualquer problema porque, contrariamente à postura dos "laicistas", acredito que a liberdade religiosa não tem um conteúdo essencialmente negativo, mas sim positivo: possibilidade de expressão, de associação, de ensino, de visibilidade, de diálogo e reconhecimento público e institucional. Estas sim, são de facto questões decisivas, não negociáveis, da liberdade religiosa, e que não se obtêm através da erradicação da religião majoritária. Esta é uma visão negativa da liberdade religiosa que entretém a ilusão de que a liberdade de uns se faz à custa da liberdade dos outros. A história da humanidade já mostrou sobejamente as consequências trágicas dessa visão que no limite é uma visão revanchista e totalitária.Na raiz da argumentação "laicista" estão dois erros de base: o primeiro é o que identifica a laicidade com a não confessionalidade do Estado; o segundo é o que considera que a não confessionalidade do Estado é condição indispensável da liberdade religiosa. Com efeito, a laicidade, ou melhor, a laicização - palavra que traduz melhor a ideia de um processo em movimento -, é uma marca comum a todas as sociedades democráticas: significa a autonomização da sociedade em relação à religião, processo através do qual a religião deixa de estruturar a organização social e legal. As diferentes instituições religiosas podem fazer campanha em defesa dos seus valores e ideias, mas não têm força legal para os impor. (...)
Outra ideia generalizada é que a autonomia da religião em relação ao Estado obriga a banir Deus do espaço público. A América é a ilustração mais evidente da negação desta ideia: dotada de um sistema de clara separação entre o Estado e a Igreja, a religião tem no entanto uma forte presença não só na sociedade, mas nos próprios actos públicos. De maneira diferente, a Alemanha é outro exemplo disso: ainda muito recentemente, ao nomear formalmente Angela Merkel chanceler, o Presidente da República desejou-lhe "muito êxito, muita força e a bênção de Deus", tendo Merkel respondido com a fórmula prevista na Constituição "Assim Deus me ajude." Em Portugal, isto seria considerado uma ofensa à laicidade e uma "beatice". Podemos entender esta perspectiva do ponto de vista histórico, mas, em minha opinião, isto revela uma visão errada da laicidade, entendida não como a condição de liberdade religiosa, mas como a condição da erradicação da religião. É que apesar das juras em contrário, esta continua a ser encarada por muitos como "o ópio do povo".

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