domingo, 27 de abril de 2003

Palavras e tretas

“ (...) Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas (...)”.
Sophia de Melo Breyner

Em tempos de tantas palavras, difícil é ser sábio para prestar atenção a todas, mas tomar apenas aquelas que valem a pena.
Se repararmos, são cada vez mais as palavras que circulam e nos cercam, orais e escritas, difundidas pelos meios mais diversos. E não só há mais palavras como se multiplicam também os pontos a partir dos quais essas palavras se enunciam. Ouvem-se as vozes de um lado e de outro, palavras soltas, murmúrios vagos, gritos e silêncios, discursos incandescentes, pronunciamentos desencontrados sobre mil assuntos, num vozear tal que, a dada altura, se torna difícil saber a que “terra” se pertence. Falam tonitruantes os que têm o (aparentemente natural) direito à palavra; falam os que se lhes opõem, para dizer, frequentemente, a mesma coisa; falam os que se colocam em “bicos de pés” para dizer que também existem. E o resultado é, frequentemente, um ruído ambiente, no qual é difícil ou mesmo impossível encontrar algum sentido, tantos são os “sentidos” e a velocidade estonteante da sua reciclagem.
Assoma por vezes a nostalgia dos tempos da palavra autorizada e única, de sentido linear e óbvio. Sem se perceber ou querer perceber que tal palavra apenas pode existir e perpetuar-se silenciando as palavras dos outros.
É salutar o acesso à palavra própria e à capacidade de a enunciar e difundir. Nisso, andamos algum caminho. Mas não o suficiente para nos darmos conta de que muitas palavras não são necessariamente as palavras de muitos. E mesmo que o fossem, muitas palavras só podem coexistir e frutificar havendo quem as escute. E mesmo que haja quem as escute e receba, necessário é saber distinguir entre aquelas que fazem sentido e aquelas que não passam de “palavreado” ou “treta”, entre aquelas que insuflam um sopro de vida e aquelas que ferem e matam.
Como encontrar sentido nas palavras? Como nos entendermos diante da proliferação e banalização da palavra? Como conseguir ouvir a palavra, ouvindo e acolhendo quem a pronuncia? Múltiplas são as vias da resposta, configuradoras de vastos e exigentes programas individuais e colectivos. Deixo uma achega do nosso P. António Vieira no seu Sermão da Sexagésima. “Muitos pregadores há que vivem do que não colheram e semeiam o que não trabalharam”.
(texto para a crónica semanal no "Diário do Minho" de 28.04.2003).

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